quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O mar é o mundo


E vejo-me fazendo a viagem de volta,
colando ponteiro em bússola,
acordando para trás relógios e rotas,
tomando imagens de Nossa Senhora,

- Protegei os navegantes,
eles não sabem o que fazem-
das Indias, das especiarias, das tormentas.

O oceano calmo, o oceano ânimo,
e eu a respirar debaixo d'água,
e eu a voltar para a terra de onde nunca saí.

Que porto me acolherá?
Será noite, será norte?
Será a terra que divisava outra terra dividida,
metade tua, metade alheia?

E eu a soprar velas e eu a abanar lágrimas.
E a terra a se afastar e o mar a se apartar,
e o porto e o destino.

O mundo é o mar, e eu querendo voltar,
e eu querendo...

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Lusa Memória


Ilusão e história
lúcida memória,
clara e súbita
subitamente sinto
agudo e doloroso
o peso do velho mundo.

Nas entranhas
sífilis e pus,
da memória original
degredo e abandono.

Da tela escorre
terra à vista,
memória afogada
na primeira missa.

Ilusão e história
sêmen
amém.

Aqui onde a terra finda


Aqui onde a terra finda,
fico como quem ama.
De tanto imaginar
o amado tornar-se.

De mais amar,
sonhar o início,
tornar e voltar,
à rota do precipício.

Sendo só e sendo vento,
tornar-se uno,
nenhum evento,
além do falso fundo.

Chegando único,
chega-se ao nada.
Nada como fim,
do próprio voo solitário.

Onde estão os dias?
Onde estão as luas?
O ser alado, deitando fora
sopro e asa, retorna-se.

Outr'alma


Do que uma alma é feita,
um cesto em alto mar,
calmarias e vendavais?

E a tinta verde que funde
o fundo azul da alma
na chama do horizonte?

Longe a terra delicada...

Temo por minh'alma
que sem mais nada
pequena e inventada,
não possa nela ancorar.

Mapa do Náufrago




Tem uma coisa que vi
que não quero desver,
uma lembrança
que não quero esquecer,
um lugar que não quero
deixar,
alma silenciosa.

Tem um mar que atravessei
que me atravessou,
um sal entranhado na pele
que não quero raspar,
uma viagem que mingua
a lua,
alma inquieta.

E por não saber,
a cada manhã acordo
com a mesma imagem,
da noite clara e distante
no mapa do céu invernal
onde naufraguei,
alma cansada!

Descoberta


Do alto desta vista cá
vou mais longe
pelo rio embarco
ganho o oceano
e cruzo
o arco de sagitário
e o cruzeiro
até o sul e mais

E se a memória de lá
o seu afogado tange
deixo tudo ao largo
resgato o mar liso e plano
de tanto uso
pego flecha e destinatário
abro velas que o vento trás

Agora entendo navegar
e o que mais me constrange
é ter deixado o que abarco
desde aqui ao dano
tudo o que é luso
escrito em diário
de não ser dignatário
tendo voltado ao cais

Lisboa


Nada minha bela
me levará para longe
nem mouro, nem caravela
aqui estou na linha d'água
desejo e vela

Rio e Cidade


Do alto me olhas,
luas e dias
perco a contar.

Névoas escondem
pedras e mouros,
no tempo a pelear.

São Jorge, Senhor,
guardai-me também,
no longe do mar,

Tenho sede dos olhos
da cidade nos meus,
para enfim, no leito deitar.

Acordo


Acordada pela calmaria
a brisa leva os varões,
degredados navegantes,
tem o mar como algoz.

Morrer a cada dia,
encontrar a terra
prometida ilha,
prata e especiaria.

Bastardos aqui assinalados!
Ide onde trava
a imaginação de paraiso.
Lavrai o sonho!

Ainda que tarde
o sulco da escritura,
a mistura de sangue e terra
tange o luso.

Medusas


Medusas são ilusóes
fiapos de sonho
dormem abraçadas na espuma
acordam no oceano profundo

Medusas são desejos não alcançados
que se jogaram no mar
vazios e transparentes

Marejam aos poucos
leves se movem
trapos do nada

As ilusóes medusam.

Ilusória


Tudo o que pintei é ilusão
lusa memória,
retornando à origem da imagem
vi que é miragem da alma saudosa,
para não morrer antes da chegada,
lançou velas ao mar,
sonhou acordou desejou
e retornou
à pedra, ao céu, à água.

Boca do Diabo


Ali onde o mar ardia
no vau encapelado das ondas
um anjo barroco sumiu.

Ventaram réplicas aos céus
súplicas vãs vadias,
nada trouxe o dia.

Na rocha partida,
incandescente flecha
o anjo era eros,

Dormia inocente,
enquanto no mar,
meu amor se perdia.

Évora


Sílabas altas
nas torres brancas
sussurra a fonte

do mouro tempo
serra prata, parte
outrora templo

som em voltas
diz ser deus
no horizonte






Monsaraz


Que cor tem a luz que luz
ocre sobre branco,

sol sobre céu,
o lilás dos dias parados
?

Leve abismo sem cair,

Muros claros de pedra sobre pedra
enraizada ao sul.

Há crespos arbustos ressequidos de dentro deste sobre,

saindo para as calçadas,
como saem as viúvas enegrecidas,

lenço, vestido e sapato comendo a claridade.

À frente, estendida e verde,
fresca como gota de chuva na palma da mão,
a sombra de Monsaraz.

Do templo, arco, areia e cal,

e a única lembrança de nunca ter saído

do labirinto embriagador da memória.


Visão


Do mar calmo ao Tejo longe
- mais além as sete colinas-
Evoco o sonho e a alma
e o corpo abarca o desejo onde
tão intensamente enjeitado parto.

Nada prego, senão o paraíso.
Temo pelos gestos bruscos
e pelo momento que calo,
mesmo que o cais monte
doloridamente velas mínimas

Estrangeiro quando falo
nas tormentas e pontes,
naufrago em colo farto.

Senão pátria, que outro rio?

O cesto arde no fogo divino,
vime à deriva urdido,
cala outro ciclo de sal.
Desmancha-se o rito.

Ao olhar atrás o passado, o fio
precário que sustenta os hinos
nos ventos e marés tardias,
cantam feitos demais.

No cal e nos ditos canônicos
para sempre aquém do espírito,
para nunca além do cais.

E ainda assim volto
E ainda acinte quero
E ainda pátria, terra.

Tejo


A senhora do meu desejo
disse que viu
um pássaro sobre o Tejo

Descobrimento


Atravessei o mar de dentro,
encontrei a mesma cara,
o mesmo verbo

Rota no avesso
começo e exílio

Não naveguei
não precisei

Cheguei no fim
da esperança
ao dar cabo de mim

A tormenta
alimenta
o náufrago

Minh'alma


Alma minha,
preguiçosa sem partir
vais comigo neste espaço
apertado e temporal.

Abraço o corpo,
animal exíguo,
movimento sem sair.

Alma minha
nunca foste gentil,
casa dividida
entre aposta e mesa.

Minh'alma não tem medida,
alça copo e presa,
morde e trinca.

Tenho uma relativa certeza,
minh´alma não é pequena,
arquiteta embarcação,
para além do mar morrer.

Calmaria


Aqui começa a zona temerária,
a divisão entre sala e mar.
A calma toma conta da casa
e o som agita a outra parte,
maremoto e ventania.

Aqui começa a divisão.
O sofá acomoda corpos,
a cisão se dá no tempo,
n´alma creditada por deuses
em alguma nau sumária,
navegando tardia outra rota.

Aqui começa a calmaria,
que ferve submersa e desumana
na onda que toca o grão,
que o deposita mais longe,
na margem oposta do rio,
no outro lado do rio
onde começa o mar.

Oráculo


Entre o mastro e o vento
o Infante faz seu destino
de Sagres ao oceano infindo
as velas veneram astros

Os astros?
nem sabem o que levam.

No início


No início, a palavra,
e a memória doce do berço.

Por causa do mar e das calmarias,
do degredo e das vilanias
cometidas em nome de deuses e santos
aos donos da terra de ouro e prata e verde e azul,
às deusas com suas crias
abatidas e congregadas pela cruz e pelo sabre,
e pela rapinagem de todos os tempos,
a encher baus d'além mar de todos os mares,
cumbucas de deuses negros de outros azuis e verdes,
plasmando solidão e miscigenagem.
Ora a imagem
da tortura e do sal a deixar a terra calcinada
inchar com o sangue
de todas as gangues.
E depois muito tempo depois,
vendo a humanidade
precária em cada alma colonizada,
consumida em instinto e desterro,
nada
que mostrasse o rosto luminoso da terra
a ser repartida e compartilhada
no menor grão no minúsculo oco.
Exilada
me mantive de qualquer pedaço de ter,
e voltei e procurei...
E revirei o mar que alcançava outro pedaço
do meu pedaço de pertencer.
Relendo a memória com outra cor,
caí por terra,
No corpo a dor findava.
A busca que a mim cabia,
o barco o berço o mar,
a travessia...
A terra outrora prometida
do outro lado lusia!

Memória


E mais não fui.
Ao sul fiquei.
Alentejo que beijo
Algarve em mim.

Medo não tenho
de ao norte entrar
cá tenho veias
embarcações
que pulsam
onde tudo é luso

E se deuses me atam
mais forte,
pobre alma errante.
Acharei quem desencante
insolvente memória?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Credenciais

I

Se levastes as palavras do sonho,
salvas das garras do sal e do naufrágio...
E se depositastes o grão da fidelidade
na memória, onde de olhos postos,
buscamos a Mãe.
Se na tua lingua levastes o mar,
sereno, o destinatário será,
ao tomar o signo do emblema.


II

Se levastes as bem seladas palavras do sonho,
salvas das garras do sal e do naufrágio,
e se depositastes o grão da fidelidade
na memória, onde de olhos postos, buscamos a Mãe.
Se o fizestes, lembrando o rito essencial
ao depositário do destino,
E se deixastes a missiva no liso oceano
existente por detrás da margem sutil,
Se se na tua lingua levastes o mar,
a palavra alcançará cais.
Se a ofertastes assim, tal zelo se tomará,
que sereno, será o destinatário,
ao receber o signo do emblema.